segunda-feira, 29 de setembro de 2025

O velho tomou seu café de manhã


Comeu um pedaço de pão, olhando a luz que vinha da janela

Sentou em frente ao fogão à lenha, enquanto observava o cães a regozijar uma caça

O que será que trouxeram agora?


O velho sentou no alpendre

Lembrou da antiga canção que lhe falava da força, do amor, do chão

Olhou para o chão. Sabia que era, em breve, seu destino.


Se demorou no olhar. Como será que estava Maria, abaixo daquela terra toda?

Deu de ombros. Fingiu não ligar. Voltou aos cachorros, que traziam consigo um gambá esfacelado.

Caras vermelhas de sangue, arfando a felicidade do abate.

Chega, sai daqui. Leva esse gambá junto ou vou enterrar ele também.


Não queria mais enterrar

A verdade é que a vontade-cachorro reinava no desejo de criar crateras do chão que trouxessem de volta seu amor

Ou quem sabe lhe pudessem confundir as vistas e ele, sem querer, se jogar no desfiladeiro ao lado de onde ficará pela eternidade o corpo de Maria.

Muitas vezes ele pensou, qual solução haveria

Mas hoje, ali, ao sol da manhã, o velho apenas olhava a vida dançar seu gesto sanguíneo


Pôr do sol

Um pôr do sol se faz à minha frente

Enquanto deito sobre ele meu olhar, derreto as vontades 

Olho a paisagem ao meu redor, celebrando a vida

Se vem mais laranja, mais rosado ou bem azulado, pouco importa


A cada tarde, a beleza do que é imprime nos olhos a força do viver

Derramado em cores

Gosto de ver em pessoas pôr do sol

Observar, admirada, suas tonalidades

Reconhecer a luz que as delineia 

Achar graça nas mudanças da estação, do humor, do tom

Me embebedo no amor pela vida

Essa, que me quer

Essa, que eu quero

A vida me abre

Aberta, me aqueço ao sol.


sexta-feira, 26 de setembro de 2025

por dentro de mim
seu desejo
fonte inesgotável 
derrama o mel
que lambuza a vida

sua boca faminta
que faz longe da minha?
se é na sua cruza que
o mundo renasce?

o encontro

O relógio tiquetaqueia
As horas caminham
L e  n  t  a    m    e   n   t   e 

No espaço entre nossos passos
Dançamos o desencontro 
Onde meus pés se aproximam
Dali os seus se vão 
Mudo a rota, serpenteio
Mas o passo já ressoa
Seus pés respondem
E te guiam
Pra fora daqui
Sinto falta da vastidão 
(dentro do meu corpo os microorganismos riem)
tenho fomes incessantes
de algo maior, que atravessa
meu corpo encruzilhada 
início e confluência de tantos afetos
sussurra em outras línguas 
o que só ela pode escutar

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Hoje escrevo com a minha alma, para ela e através dela.

Essa não é uma história que começa nessa vida

Hoje eu saúdo isso que atravessa e de novo e de novo, pelos tempos, forma o que eu sou.

Respiro

As memórias escritas embaixo da pele, papiro do que fui
Estrelas no meu respirar
uma luz que se apaga

Luto
Verbo e estado

Hoje entrego às estrelas de volta essa dor

Fui eu
Sou eu

Escolho fazer de minha casa alegria
De mim mesma amor 
Do amor, bondade
Deixo que a bondade reescreva meus ossos
Jamais subservientes
Abrindo espaço - e coragem - para que, dentro de mim, haja, sim, a luz.

A luz que vê. Que ilumina. Que acolhe. Que aquece.
Lareira que enternece a vida

Ao olhar meu passado um "falso amor" se faz. Esse que reduz. Que tira. Que desfaz. Que amputa.
Enxergar a responsabilidade que temos corta a própria carne
Exige
Coragem
Vivo, afinal.

Por muitas vidas o amor foi pra mim interdição 
E em parte por escorrer, noutra por se esconder, embaralhou o que eu sabia
e vivi, embaralhada
emaranhada
nas teias das minhas vidas
como aranha, bote e presa
dependurada

Vi a vida de cabeça pra baixo
E ela me viu
Ver a vida
E ser vista por ela
Dependurada
Na inversão do meu próprio ser
o amor torna-se dor
o encontro - suspensão 
o real imaginário 
a ponte explosão 
Vivi a dor, é verdade
Ela me viveu também 
Nos sons, nos cheiros, nas vísceras 
Esculpimos um  passado



Voltar a mim
Sem nenhuma pedrinha que me mostrasse o caminho
(o que existe por baixo dos cacos?)
trêmula chama
acendendo meu escuro
fogueira

No fogo que arde
Pulso de luz
Que veio da escuridão 
e só dela poderia se originar
expando a luz
atravesso
toco você 
As cascas, opacas, caem - uma a uma
e resta o brilho - fervoroso - de existir
Eu, vida
E pulso
queimando correntes
refazendo o amor
que me disse
Eu posso. Eu curo.

Ouvi sua música 
No sim da existência 
Hoje, é a porta dessa vida que abri e convido, vem.
Entra, canta, dança e pulsa
O som que cura.

sábado, 13 de setembro de 2025

 A mãe que domina

A mãe que arrasa

A mãe que sargenteia

todas elas devidamente encarceiradas. 


Agora a única maternidade é a doce

A que fala com voz de anjo

A que antes de explodir pelas emoções que tem lidou com cada uma delas e não descontou nada 

no filho

no (ex) marido

na pulga da cachorra

no céu ou nas montanhas


A mãe de hoje é serena

Tradwives a fazer pão às 05h da manhã para que seu amo, digo, seu macho, digo, seu homem, digo, seu tutor, digo..

possa acordar com o cheiro quente que é seu desejo


Infinitos tutoriais

Como reconhecer os traumas da criança

Onde você está errando - e você está, pra sempre, errando... digo, errada... digo, não errante. digo..

todos ensinando a submeter

submeter a raiva, a opressão, o status quo, o que traria a sagrada necessidade de explodir a estrutura

para que haja paz

(que bonitinha)

(menininha da mamãe)


se a raiva não educa

então o mundo não muda

se ela não puder sentar à mesa e comer, junto a meus filhos

então que se virem as mesas, as cadeiras, os pratos e os copos e a comida voe pelos ares 


quinta-feira, 11 de setembro de 2025

na minha pele flor, vísceras, sangue, destino
a incontrolabilidade da vida que ameaça a expulsão de toda lógica, de toda sentença, de toda certeza
para que, suspensa, só a vida pulse
me sinto um cavalo selvagem
correndo sem saber minha direção 
desejando antes de tudo 

a       s  e  l  v  a  g  e  r  I  a

não limitar
explodir em desejo
desobedecer
desorganizar

a única educação que recebi foi a dos moldes
só a selvageria me devolve
vórtice, vulcão, lava, tempestade incontrolável 
que a tudo inunda e nunca pede licença 
brota em toda parte
emana em todo lugar
faz o limite rir-se
ele mesmo imerso no gozo incontrolável da vida -
poder obscuro da eternidade 
a beleza tem me chegado devagar
cada passo em direção a ela
é sentido na espinha dorsal
a beleza rasga os véus
dilacera as separações 
emana sem controle o curso da vida, que extrapola, deslimita, abre

a beleza é, em si, o perigo
depois dela não se sabe
derrete-se
como o metal ao fogo
forja-se algo que antes não havia

a gente nunca sabe a forma na qual nos derramamos depois
até ser novamente
derretido

a beleza chama
goteja 
incendeia
guia
Hoje a dor da maternidade me atravessou

Uma das coisas que percebo que aconteceu ao me tornar mãe foi uma explosão dos meus sentidos. O que eu percebia foi catapultado milhares de vezes por um corpo que brotou de gestar, parir, amamentar, cuidar

Um outro universo de cores, sensações, impressões começou a ser uma verdade que de tão enorme se torna doída nas camadas da minha pele e da carne

Atravessar essas camadas em meus próprios portais internos e não ter qualquer escuta da enormidade de ser mãe 

Mãe rasga. Mãe atravessa. Mas é travessia necessária da vida. Não se passa por isso sem rasgar a si, sem burlar a si, seu corpo, seu tom, sua forma

Onde está a mulher que existia antes?

Ela nunca mais estará 

Nos sentidos catapultados, na fome da vida que se multiplica, na beleza desesperada que dói

Em nenhum deles encontro mais o meu olhar

Descondicionar é parte do processo de voltar a mim
(Insuficiente, eu diria)

Mas já meu corpo é agora a realidade persistente da explosão do sentir, do perceber, do receber, do entregar

Agora eu escorro... não sei mais o que contenho

Todas as memórias me são evocáveis. 

Todas as dores realizáveis 

Meu corpo agora, olho d'água, brota a vida e a oferece de novo à existência 

Despejar a vida na vida

Ninguém me contou que exigia tanta coragem. 

Ninguém me contou o cansaço de seguir sendo nascente que não esgota e sempre, mais um pouco, entrega

terça-feira, 9 de setembro de 2025

 meu corpo conversa com o seu

como estrela, como poeira, como pó

sopra o vento do que outrora foi

t e m p o


desanda

desorganiza

destiquetaqueia


na espera entre dois

nasce um mundo

nasce o gozo

nasce a flor

e toda cor que num passado foi


e do pó se fez

pedra sobre pedra

o altar onde edifiquei meus sonhos

sonhei meus cantos

vivi o corpo como quem batiza

saudando a vida


que seja, antes de tudo, viva

A travessia

 há olhos que têm em si

a flecha que atravessa

adentram meus olhos, surpresos

descendo pela cachoeira da alma

se banham no oceano de mim


e quando os busco, toalhas em mãos,

pedindo que por favor se vão,

se riem, nadando-me

ferozes batedores de braços e pernas e mãos e peitos e bocas e nus

- porque no oceano de mim só se entra nua - 

dilaceram meu pudor


sentei-me então à beira da praia

contemplando a poesia

num mergulho e solto as vestes 

- que me prendem -

e sorrio, nua, nosso encontro

domingo, 7 de setembro de 2025

 esparramo

liquido o que conheço

me gotejo no amor que eu nunca fui


corpos que nunca habitei

línguas que desconheço


abro o amor como uma champagne

e na força de seu estalido

dispo-me do que sei

para - nua - atravessar

a fronteira que nos separa

 As fomes me atravessam

A fome de amor

A fome da dor que esteve aqui

A fome do porvir

                 que já parece estar


Vivi a vida como uma negociante

No comércio de dores e fomes

Escambeei a vida

Deixei a alma aburguesar 

No delírio infantil do controle


Como quem guarda em seu estoque

Os potes, os vidros, de(vida)mente organizados, etiquetados, uniformizados

contendo, ordenadamente, minhas formas


Bombardeio minha própria ordem e, admirada, vejo enquanto os cacos e vidros e tampas se desabam rompendo os limites do que outrora fora eu.


Na fumaça da explosão, um corpo faminto

Um monstro, com cabeça de onça, pata de elefante e garras de jacaré a atacar memórias, abusos, amores e tudo que em mim ainda pulsa 

sem saber direito o amor e a morte se tornam amantes 

                                                                         rodopiantes na noite escura

até que a última garra se     d e s f a ç a

com o último suspiro do que um dia fomos


Somente a poeira testemunha

O abafar e a minha história

os cacos cortam


cuidado onde pisa

o que acha que encontra pode ser

a próxima explosão

o corpo

Amontoado de órgãos e pêlos, 

pele e sangue, 

vias rápidas e lentas que me levam até você


Um passo adiante e todos os órgãos travam

como o jumento que se nega a ir adiante

E na força da brusca parada se batem uns nos outros

e estatelam dentro de mim, esparramados


Tentam voltar ao lugar e à ordem mas eles também já não a entendem

e o pulmão escorre pelas pernas

o coração insiste em tomar o lugar da cabeça

o estômago brigando que o novo peito tem ele sim


De repente os olhos te vêem passar

e todos os órgãos, se batendo por dentro, tentam encontrar a forma de darmos qualquer passo

caímos, no desengoçar do próprio infinito


As vísceras saudando o amor

sem perceber que será ele a penetrar tudo com a ordem de despejo da lógica em mãos